Viviane Monteiro / Jornal da Ciência
Em entrevista ao Jornal da Ciência, o novo diretor-presidente da Embrapii fala sobre a necessidade de estreitar os laços entre universidades e empresas no País e o projeto de criar um instituto de química verde. A intenção é desenvolver fármacos brasileiros e abocanhar parte de um mercado que movimenta bilhões de dólares por ano no mundo
Depois de deixar um legado invejável à frente da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) por mais de uma década (de 2004 a 2015), o atual diretor-presidente da Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial (Embrapii), Jorge Guimarães, assume agora o desafio de estreitar a relação entre a academia e a empresa e quebrar a velha cultura do setor empresarial de não produzir patentes. Guimarães vai sugerir ao Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) a criação de um instituto de química verde para desenvolver a área de farmoquímicos – princípios ativos para produção de remédios.
Em entrevista ao Jornal da Ciência, em seu escritório em Brasília, a poucos dias de assumir a instituição oficialmente (em 02 de outubro), Guimarães, justificou que a necessidade de se criar esse instituto vem do fato de que a química brasileira hoje, embora competente, é muito voltada ao lado acadêmico. A intenção é desenvolver fármacos brasileiros e abocanhar parte de um mercado que movimenta bilhões de dólares por ano no mundo.
Guimarães também falou sobre a intenção de criar mil unidades Embrapii em seu mandato e, também, do interesse brasileiro pela retomada da fabricação de heparina. Trata-se de um medicamento usado há mais de 70 anos, que não tem mais patente, e cujo mercado movimenta em torno de US$ 10 bilhões por ano no mundo. É usado no tratamento de trombose, agindo na prevenção de coagulação do sangue e infarto. A matéria-prima utilizada na sua produção é extraída da tripa de bovinos e suínos.
Guimarães falou também das oportunidades inovadoras, em um momento de turbulência econômica e fiscal, e de projetos em andamento da instituição. Até abril deste ano, a Embrapii havia firmado 86 parcerias, contra 74 realizadas em todo o ano de 2014. Entre seus parceiros, estão a Embraer, Braskem, Anelus, Volvo e Votorantim. Desde sua fase piloto, em 2012, até agora, a Empresa já investiu R$ 212 milhões em projetos de inovação. Confira, abaixo, a entrevista:
Jornal da Ciência – A crise nas contas públicas, agravadas pela turbulência econômica, ameaça o orçamento da Embrapii?
Jorge Guimarães – Temos um contrato com os dois ministérios (MEC e MCTI), para seis anos, com uma previsão de R$ 1,5 bilhão para todo esse período. Portanto, estamos bem. E quanto mais projetos nós tivermos, e mais interações entre empresas e universidades fizermos, mais esse valor aumenta.
JC – Como a ciência pode ajudar o País a retomar a capacidade produtiva industrial e enfrentar o processo de desindustrialização desencadeado há décadas?
JG – O Brasil começou muito tarde em toda sua atividade científica. Nossas universidades e nossos centros de pesquisa são muito jovens, e nossas empresas, na maioria, não têm centros de pesquisa e desenvolvimento (P&D). Mesmo as mais ou menos pujantes nunca se preocuparam em montar um programa de P&D para melhorar a competitividade, já que era mais fácil seguir outros caminhos (pela importação de bens de capital).
O cenário, porém, mudou e isso não é mais possível. Hoje é inviável produzir uma patente sem um conhecimento científico profundo e gerar um novo produto. Antigamente, um artesão inventava uma coisa que virava um instrumento, mas hoje não há mais espaço, porque o conhecimento científico permeia toda forma de inovação.
O País demorou muito a se dar conta da importância da universidade. Estamos muito atrasados. A Universidade de São Paulo (USP), hoje com quase 80 anos, quando foi criada, em 1934 – a primeira no Brasil -, a Universidade Harvard, nos EUA, já tinha 300 anos. O mesmo aconteceu com os institutos de pesquisa: embora alguns tenham surgido com a vinda da Família Real, o processo aconteceu de forma frágil e isolada para o tamanho do Brasil.
O fato é que, ao longo de 60 anos, o Brasil investiu muito na formação de recursos e no desenvolvimento de pesquisa básica, adquirindo, inclusive, posição de destaque. Mas a pesquisa aplicada não acompanhou esse movimento.
JC – Esse cenário refletiu na criação de patentes?
JG – Fala-se muito que a universidade brasileira não produz patentes. No mundo, porém, somente 2% das patentes dos principais países produtores de inovação são de universidades e o restante (98%) é depositado pelas empresas. Já no Brasil, a situação é inversa: as universidades lideram a produção de patentes e as empresas têm pouca participação nisso.
JC – Essa cultura vem mudando?
JG – A Embrapii nasce para quebrar isso, sabendo que as empresas pouco dispõem de centros de P&D. Sem pesquisa, pouco se avança na inovação. A Embrapii possui 13 unidades e dezenas de projetos em desenvolvimento com as principais empresas nacionais. Portanto, abre-se um caminho promissor. Há novas chamadas públicas em curso e espero aumentar esse número criando 10 novas unidades, mais ou menos, entre o fim deste ano e início de 2016.
JC – Quais as propostas dessa chamada pública para o setor acadêmico?
JG – Estamos com um conjunto amplo de propostas para o setor acadêmico, oferecendo chances para buscar inovação. Temos duas chamadas em andamento. A primeira para área BIO, que inclui a biotecnologia e as áreas de saúde, na qual vamos identificar grupos de pesquisas que atendam às regras, normas e requerimentos que a indústria pede. São 37 propostas de grupos interessados em fazer ponte com o setor industrial.
A primeira seleção da “chamada pública um” foi entre 21 e 22 de outubro. A intenção é fechar a “chamada um” no fim do ano. Haverá outra chamada pública em março e, nessa, as propostas serão mais amplas, mais de 60, envolvendo todas as áreas: engenharia, manufatura etc. No total, serão quase 100 propostas.
Após a fase de seleção e de consultorias científica e empresarial, damos o carimbo de unidade Embrapii e o grupo de pesquisa já pode buscar os parceiros para começar a tocar o projeto. Em cada projeto identificado e contratado, a Embrapii investe um terço do valor orçado. Se o valor do projeto for de R$ 6 milhões, a Embrapii põe R$ 2 milhões, reduzindo o aporte financeiro necessário para a inovação, e a empresa investe outros R$ 2 milhões. Já a contrapartida do instituto é a pesquisa, ou seja, recursos não financeiros, em forma de salários e equipamentos de pesquisa capaz de compensar, no mesmo montante, a terceira parte do valor. Faltava uma Embrapii para trabalhar as idiossincrasias que existiam.
JC – Por que o Brasil figura tão distante de países inovadores?
JG – Sem centros de P&D é difícil fazer inovação. Quantas empresas brasileiras têm centros de P&D? Muito pouco. A área farmacêutica brasileira, por exemplo, embora seja um setor capitalizado, tem poucos centros de pesquisa e desenvolvimento.
JC – Em quanto tempo o Brasil pode reverter esse quadro?
JG – Isso vai demorar um pouco, pela baixa cultura que ainda temos na interação entre universidade e empresa. Alguns empresários dizem que a culpa é da universidade, que não é aberta à interação. Por outro lado, há pesquisadores que dizem que a culpa é das empresas, que não percebem as oportunidades.
A Embrapii veio para melhorar e estimular essas relações. Selecionamos grupos que não têm o problema de interagir com as empresas e, uma vez selecionados, estimulamos as empresas a interagir com eles. Mas isso é apenas o começo para um País que tem 205 milhões de habitantes.
Outro componente sério, mas pouco levado em consideração, é o fato de o Brasil ter somente 8,5% da população com nível superior. Esse é um caso seríssimo que interfere em tudo: impacta na competência de nossos parlamentares, na de nossos políticos e das empresas, sobretudo nos grupos empresariais familiares, com pouco profissionalismo.
JC – A Embrapii já tem parcerias com a indústria farmacêutica?
JG – A indústria farmacêutica está um pouco atrasada nisso. Por enquanto, não temos ainda parcerias. Mas agora vamos ter, porque estamos aprovando as primeiras unidades com foco na área de farmoquímicos, que são princípios ativos para produzir medicamentos. O Brasil tem uma balança comercial extremante negativa no setor de farmoquímicos, embora seja o maior produtor de matérias-primas. Por exemplo, somos o maior produtor de suco de laranja do mundo. Mas importamos ácido cítrico, que é extraído do suco da laranja.
O Brasil é também o maior produtor de açúcar – ou de sacarose, extraída cana. Metade dessa molécula chama-se glicose – o soro glifosato. Mas o Brasil importa glicose, apesar de ser o maior produtor de sacarose do mundo (risos).
O foco da indústria farmacêutica brasileira tem sido os genéricos e similares. Agora é hora de inovar. O Brasil é o segundo maior produtor de conhecimento sobre doenças tropicais. Por que não temos vacinas para dengue, malária e leishmaniose? Para essas últimas duas é mais difícil, mas para vírus como o da dengue, sinto muito.
JC – Qual a dificuldade do Brasil para explorar a matéria-prima para produção de fármacos?
JG – O MCTI tem 25 institutos – de Física, um monte na área ambiental, tem de Informática e de T&I- e nenhum de química.
A nossa química hoje está centrada nos institutos acadêmicos das universidades e em algumas empresas, como a Braskem. Mas isso é muito pouco diante do potencial que temos. Imagina quantas matérias primas compõem um medicamento, comprado nas farmácias, e que são importadas pelo Brasil? Temos competência para produzir tudo isso aqui.
Vamos induzir o MCTI a criar um instituto de química, porque isso será útil para nossa farmoquímica e um instituto de química verde, que está presente no nosso dia-a-dia, seria da maior importância para o Brasil.
Esse instituto poderia ser implementado em vários lugares. Mas a primeira regra é ter uma boa universidade e um bom instituto de pesquisa acadêmico por perto, porque os estudantes são essenciais. Existem bons institutos de química no Rio de Janeiro, em Campinas (SP) e no Rio Grande do Sul; e temos também muita gente competente nas universidades públicas e privadas do País.
JC – Essa proposta já foi formulada ao MCTI?
JG – Vamos abrir um espaço para propor isso.
JC – A burocracia e a morosidade também emperram o desenvolvimento de fármacos no Brasil…
JG – Os regulatórios são impróprios. A lei de patentes é imprópria. A Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) vem melhorando, mas precisa melhorar mais.
JC – O grupo de cientistas do Instituto de Química de São Carlos (IQSC), da USP, que produziu a fosfoetanolamina sintética para cura de qualquer tipo de câncer passaria, pela análise da Embrapii?
JG – Esse grupo não passaria pelo crivo da Embrapii. Ele não tem experiência nenhuma de lidar com empresas. O grupo fez alguns testes no laboratório e concluiu que isso diminuiria o crescimento de certos tipos de câncer, mas não se preocupou em passar por uma segunda etapa. Passou somente pela fase de pesquisa básica. E isso não é a regra. É preciso passar por outros testes. Isso pode até gerar um artigo, às vezes, competente. Mas tem que passar pelos testes pré-clínicos e clínicos (em humanos).
JC – Ainda é possível a fosfoetanolamina sintética passar pelas etapas de pesquisas necessárias?
JG – Sim, se convencer o pessoal a passar pelas etapas que precisam.
JC – No Brasil, o setor privado, tradicionalmente, não investe em ciência, tecnologia e inovação. Isso vem mudando? Como estão os investimentos do setor público e privado em CT&I?
JG – Esse cenário tem que mudar ainda. Os países que investem 2% do Produto Interno Bruto (PIB) em ciência, tecnologia e inovação não se desenvolvem. No mundo, há os países que investem 2% ou mais do PIB em CT&I e os que investem nem 2% do PIB. O Brasil está no grupo que investe 1%. Já em países como Cingapura, Suécia, Alemanha, Coreia, essas proporções giram em torno de 3% a 4%, e as empresas lideram esses investimentos, com mais de 70% do total.
Do nosso 1,2% investido em ciência, tecnologia e inovação, metade é tido como se fosse de empresa. Essa empresa, porém, é praticamente única: a Petrobras. Ou seja, o investimento de nossas empresas em pesquisa e desenvolvimento é uma cultura que ainda não se estabeleceu. A Embrapii trabalha para superar essas dificuldades.
JC – A atual conjuntura econômica tende a piorar esse cenário? Em tempos de crise geralmente os empresários tendem a postergar os investimentos de forma geral…
JG – Estamos em uma fase crítica. Mas crise, em chinês, significa oportunidades. E no Brasil não é diferente. Começará a surgir muita coisa inovadora explorando a crise. Os segmentos que têm foco no mercado exterior devem aproveitá-la muito bem. E para nossa indústria farmacêutica, que já conta com um enorme mercado interno, existe também um enorme mercado externo a ser explorado. Quem produzir vacinas para o combate a dengue terá muito sucesso.
JC – Existe um esforço para retomada da produção de heparina bovina no Brasil. Como está esse movimento e o potencial desse segmento?
JG – A heparina é extraída da tripa de bovinos e suínos e é um mercado que movimenta em torno de US$ 10 bilhões por ano. No passado, o Brasil já foi um dos maiores produtores do mundo. Ainda produz alguma coisa, mas muito menos do que já produziu. Trata-se de um medicamento com 70 anos de uso e que nem tem mais patente. É preciso descobrir um substituto melhor.
O Brasil perdeu espaço nesse mercado quando houve focos da vaca louca e os ingleses decidiram proibir produtos farmacêuticos de origem animal. A heparina entrou nesse pacote, mas mantiveram os suínos que não têm essa enfermidade. O cenário trouxe impacto negativo para o setor de heparina, o que foi uma besteira. Porque o tratamento químico que se faz disso destrói qualquer vírus ou qualquer organismo que possa ser responsável pela vaca louca.
Diante dos fatos, nós esmorecemos um pouco e os chineses avançaram, sobretudo na heparina suína, já que eles não têm gado. Hoje o mercado está dominado pelo medicamento suíno, mas sabemos que o bovino tem o mesmo efeito. Das poucas fábricas que sobram no Brasil, depois da crise da vaca louca, existe uma situada em Passo Fundo, no Rio Grande do Sul.
Começamos um esforço para recuperar a heparina bovina. O Brasil é o maior produtor de gado do mundo e o maior exportador de carne bovina. Então em vez de fazer “dobradinha”, vamos extrair heparina (risos).
JC – Na Capes o senhor deixou um legado no sistema de avaliação dos programas de pós-graduação e, igualmente, na criação de vários programas para formação de professores da educação básica. Qual o legado que o senhor gostaria de deixar na Embrapii?
JG – Devemos avançar muito na identificação dos grupos que têm competência e capacidade de trabalhar em pesquisa aplicada e em inovação de interesse das empresas. Hoje estamos com treze unidades e gostaria de chegar a mil unidades Embrapii nos próximos quatro anos do meu mandato. É um número ousado e seria satisfatório dizer que nos espaços das universidades existem mil grupos, qualificados previamente pela Embrapii, para atuar com as empresas e atender às demandas, ao foco e às características que o setor privado exige. Na medida em que se aprova um grupo, outros quatro ou cinco despertam para aquilo.
JC – Haveria fôlego financeiro para isso?
JG – Se vamos manter o fôlego financeiro, e se as empresas vão apostar nisso, é outra coisa(risos). Mas asseguro que existe capacidade para se criar mil unidades Embrapii ao lado das universidades nos próximos quatro anos.
Esta matéria foi publicada na edição de 29/10/2015 no site do Jornal da Ciência (http://www.jornaldaciencia.org.br/existe-capacidade-para-se-criar-mil-unidades-embrapii-ao-lado-das-universidades-nos-proximos-quatro-anos-afirma-jorge-guimaraes/)